Somos, nós mulheres, aproximadamente 52% da população, mas somos muitíssimo subrepresentadas na política. Esse descompasso é o traço mais evidente de um cenário complexo, que combina avanços institucionais importantes, inovações políticas impulsionadas por mulheres em todas as esferas e, ao mesmo tempo, barreiras estruturais persistentes – do financiamento desigual à violência política de gênero.
A eleição de 2022 levou 91 deputadas à Câmara dos Deputados, número que equivale a 17,7% das 513 cadeiras da casa. Também foram eleitas 15 senadoras, número correspondente a cerca de 18,5% dos 81 assentos do Senado. Para a história da democracia brasileira, trata-se de um resultado excelente. Mas ainda estamos muito distantes da paridade, temos casas legislativas pobres do ponto de vista da diversidade e pontuamos muito mal quando somos comparados com as demais nações. De acordo com a ONU Mulheres, ocupamos o 133º lugar no ranking global de representação parlamentar de mulheres.
Os números referentes aos governos estaduais e ao Executivo federal também são lamentáveis: apenas duas mulheres governam estados brasileiros. No plano federal, o número de ministras é historicamente alto. Ainda assim, temos poucas ministras e os homens tendem a ocupar postos-chave e liderar as pastas mais estratégicas da Esplanada.
É evidente que temos que lutar para que esses números mudem.
Não existe democracia sem diversidade e sem pluralidade – duas noções distintas e igualmente fundamentais para um Estado de Direito saudável. Um espaço diverso é aquele ocupado por indivíduos com distintos lugares de fala. Um espaço plural, por sua vez, é aquele preenchido por sujeitos com distintas posições a respeito de um mesmo tema. Espaços de tomada de decisão verdadeiramente democráticos devem ser diversos e plurais, sob pena de serem democrático apenas formalmente. A diversidade e a pluralidade contribuem de maneira definitiva para o combate às desigualdades, a conquista e garantia de direitos e a celebração e o respeito às diferenças.
Ciclo eleitoral
A aposta é a de grupos sub-representados e vulnerabilizados, como as mulheres, uma vez que experimentam uma série indizível de violências concretas e simbólicas diariamente, tendem a ser mais sensíveis às violências experimentadas por todas, todos e todes. Não se trata de defender mais mulheres no poder porque elas seriam mais sensíveis por natureza. Também não se trata de subscrever a tese de que há temas femininos – relativos ao cuidado, em especial – para os quais mulheres seriam mais talhadas e que estariam em boas mãos se confiados às mãos de mulheres.
Argumentos deterministas sobre papéis de gênero nos atrasam, jamais nos levam avante. O argumento aqui, posto sucintamente, é o de que representantes de grupos vulnerabilizados, quando alçados ao poder, têm atitudes mais contundentes na defesa de todos os grupos vulnerabilizados.
Contudo, diante de mais um ciclo eleitoral, algumas questões se colocam conferindo complexidade a essa aposta. Nomeadamente, é natural que eleitoras e eleitores se perguntem, ao menos duas coisas. Toda mulher na política defende os direitos das mulheres e têm posições interessantes no que tange à igualdade de gênero? Quem quiser ver avanços na pauta dos direitos de meninas e mulheres deve votar em mulheres, independente de suas agendas públicas, para garantir um contingente feminino maior no poder ou optar por candidatos homens que se comprometam com os direitos das mulheres?
Quanto à primeira dúvida, a resposta é: infelizmente, não. Temos inúmeros exemplos de mulheres cujas trajetórias públicas estão mais intimamente ligadas a pautas machistas do que a de muitos homens.
Michele Bolsonaro (presidente nacional do PL Mulher), nome ventilado por alguns para compor a chapa que concorrerá à Presidência da República e cotado por outros para concorrer ao Senado no pleito de 2026, é exemplo deste tipo de postura.
Em novembro, Michelle participou de evento que reuniu mulheres de direita, em Londrina, e reforçou qual é, em sua opinião, o papel da mulher: “É você deixar a comidinha do marido, das filhas, dos doguinhos, tudo pronto na geladeira, e pedir para o marido aquecer na hora do almoço. Eles vão sentir a sua presença. Fazer uma comidinha gostosa para o marido, cuidar da casa, não te menospreza como mulher”.
A esposa de Jair Bolsonaro também afirmou que seu “propósito na terra”, dado que nasceu mulher, é ser auxiliadora. Declarou que “a Bíblia fala da submissão da esposa ao marido, mas é a submissão saudável”. A dirigente ainda criticou o feminismo de parlamentares de esquerda, que, de acordo com ela, “demonizam a figura masculina” e “defendem a legalização do aborto”. Expoente do antifeminismo na política, Michele Bolsonaro é uma mulher que não defende os direitos de meninas e mulheres. Portanto, não as representa. Com mulheres como Michelle no poder, seguimos sub-representadas.
Machista assintomático
Desde a Grécia Antiga, o espaço público pertence aos homens. Às mulheres, pessoas escravizadas e crianças, cabia apenas o espaço doméstico. Na pólis grega, “uma mulher que falasse em público não era, por definição, uma mulher – era uma aberração”, escreve a feminista inglesa Mary Beard, no best-seller Mulheres e Poder: Um Manifesto. Hoje, temos no poder ou o disputando, mulheres que rompem com a noção, tão antiga quanto a própria democracia, de que política não é para mulheres, mas não rompem com a prática nefasta de identificar mulheres que desviam do que consideram norma e taxá-las de aberração. São mulheres que lutam para ser tomadoras de decisão, mas que não lutam por igualdade.
Vale notar que ter uma agenda feminista e lutar pela igualdade de gênero pode assumir muitas formas. É possível ter prioridades ligadas a temas econômicos, à segurança pública, à educação, à saúde. Uma mulher pode brigar por qualquer coisa e, na essência, brigar por igualdade. Ela só não pode, para ser uma candidata que defende os direitos das mulheres, ignorá-los, menosprezá-los, negligenciá-los. E não podem debochar de quem milita por uma vida digna para meninas e mulheres.
A segunda pergunta, diante dessas considerações, pode parecer simples de responder. Sim, um machista assintomático comprometido com a luta por igualdade de gênero pode contribuir para o avanço de pautas relevantes para o movimento de mulheres. Mas pode também prometer avanços e, uma vez com a caneta na mão, deixar as pautas feministas sempre para depois. Lamentavelmente, frequentemente o fazem.
Para evitar que confiemos em homens progressistas que se dizem aliados do feminismo, mas acham que nunca é um bom momento para encampar pautas relacionadas, por exemplo, a direitos sexuais e reprodutivos, precisamos saber mais sobre o que pensam esses homens. Precisamos que o compromisso com a igualdade transcenda o discurso e ganhe concretude, ganhe contornos de plano de trabalho – com metas e prazos. E precisamos escapar de algumas cascas de banana, como a promessa de plebiscitos.
Na dúvida, vote nelas
É comum que homens no poder digam-se aliados das mulheres e, quando perguntados sobre como farão para promover mudanças caras às mulheres que batalham por igualdade, direitos e bem-viver, digam que promoverão plebiscitos para que o país defina nas urnas o rumo que quer tomar. E é verdade que algumas mulheres no poder lançam mão do mesmo recurso.
Pode soar uma ideia razoável, mas não é. Ao contrário, é uma estratégia perigosíssima. Evidentemente, numa democracia, a participação social é essencial. Contudo, a expressiva maioria dos especialistas em direitos humanos soa alarmes sempre que direitos fundamentais de grupos vulnerabilizados se submetem à vontade da maioria sem qualquer salvaguarda. Abre-se caminho para que que a desinformação e retóricas inflamatórias levem o povo ao paroxismo da emoção e inviabilizem decisões informadas e justas – é o que diz a cientista política colombiana Sandra Borda Guzmán, autora do livro Protegiendo el Derecho de Decidir: la Batalha Contra las Iiciativas de Referendo Antiaborto.

Em suma, direitos fundamentais devem ser protegidos independentemente da vontade da maioria. Num Estado de Direito funcional, as instituições e as pessoas democraticamente escolhidas para dirigi-las têm o dever de proteger grupos vulnerabilizados até da vontade da maioria. Submeter direitos humanos a plebiscitos coloca-os em risco de serem revogados ou enfraquecidos. Além disso, em casos assim, plebiscitos criam precedentes perigosos e geram condições para ataques futuros a outros direitos fundamentais. Plebiscitos nem sempre são a melhor maneira de expressar a soberania popular
Enfim, homens eleitos mediante a afirmação de compromisso com a igualdade de gênero precisam ir além do discurso; precisam descer aos detalhes de como contribuir para avanços concretos e com celeridade; e devem ter a coragem de apresentar estratégias que levem o Brasil às transformações sociais cruciais e urgentes no tema da igualdade de gênero, sem cair na tentação de oferecer respostas fáceis para questões difíceis – respostas estas que podem soar cabíveis, mas são ineficazes e irresponsáveis.
Na dúvida, vote nelas. Em 2026, veremos nas urnas inúmeras candidatas feministas. Quem procurar, achará. Só assim teremos garantia de representatividade, senso de justiça e coerência. Como costuma dizer a política norte-americana democrata Nancy Pelosi, precisamos nos organizar para não agonizar.