Um labirinto de ilusões

Onda de projetos transforma proteção da biodiversidade em mercadoria financeira
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Diante da atual degradação da biosfera, muito se fala em Antropoceno, era das mudanças geológicas provocadas pela espécie humana. Mas pouco se diz sobre o que essa ideia escamoteia: nem todos os seres humanos têm responsabilidade na desorganização do Sistema Terra.

É um escárnio responsabilizar povos indígenas, bem como famílias que cultivam alimentos saudáveis, comunidades quilombolas ou ribeirinhas pela crise ecológica em curso. Quando o assunto são mudanças climáticas, tais grupos não podem figurar ao lado de corporações que impulsionam degradação ecossistêmica ao sabor de lucros obscenos, a partir de produtos que envenenam solos, aquíferos e pessoas.

Aliás, de janeiro a setembro de 2024, empresas que comercializam agrotóxicos deixaram de recolher mais de R$ 13 bilhões em impostos no Brasil. São sete grandes corporações, que faturaram quase R$ 21 bilhões em 2023. Dentre elas, a Bayer, que desembolsou a bagatela de R$ 1 milhão para viabilizar a AgriZone, lugar idealizado pela Embrapa como sede “paralela” do agronegócio durante a COP em Belém.

Gigantes do agrotóxico

Publicado pela Friends of the Earth Europe e coordenado por Larissa Bombardi, um relatório de 2022 revelou que as gigantes dos agrotóxicos – Bayer, Basf e Syngenta – despejaram algo próximo a € 2 milhões no lobby do agro no Brasil.

Agronegócio que, no mesmo ano, recebeu R$ 56,3 bilhões de subsídios estatais e que faz, nos espaços rurais brasileiros, o serviço cruento que o capital puritano necessita na atual quadra histórica, em que seu modelo de civilização se afunda em crise: abre terreno à mercantilização de terras e bens comuns, além de sufocar ainda mais a situação da classe trabalhadora, inclusive, com impulso à escravidão moderna.

Isso implica avançar sobre terras públicas e territórios de populações tradicionais, seja pelo uso da violência explícita ou do poder político articulado em torno da Frente Parlamentar da Agropecuária. Como corolário, crescem grilagens de terra, guerra química contra populações, desmatamentos criminosos e perda de biodiversidade, que compromete funções ecossistêmicas essenciais.

Por sinal, de acordo com o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, o aumento de eventos climáticos extremos expôs, globalmente, milhões de pessoas à insegurança alimentar e à insegurança hídrica, com impactos negativos, desproporcionalmente, mais severos para pequenos produtores de alimentos, famílias de baixa renda e, especialmente, povos indígenas – cujas terras abrigam cerca de 80% da biodiversidade remanescente no planeta.

Ainda assim, sob a narrativa de que os legítimos guardiões da floresta são incapazes de cuidar da biodiversidade – que, na verdade, eles humanizam com seu cuidadoso pisar na Terra –, uma onda de projetos de mercados de carbono avança sobre terras indígenas e comunidades que vivem da agricultura tipicamente camponesa.

Daniel foto joão laet afp
Agronegócio ameaça diversidade dos ecossistemas (Foto: João Laet/AFP)

Projetos que, tampouco, vendem absorção de carbono, mas promessas de proteção de florestas, as quais há muito estão protegidas pelos povos tradicionais, sob a justificativa estapafúrdica de que estes são incapazes de resguardá-las. Falácia que requenta a lógica racista do colonialismo, complexificada pela transformação da biodiversidade de territórios tradicionais em mercadorias financeiras.

Talvez isso faça crescer os olhos de muita gente, até mesmo de alguns gestores do BTG Pactual, banco que possui contratos com Big Techs que necessitam “compensar” emissões para honrar compromissos internacionais. Através da Timberland Investment Group, sua subsidiária de gestão de terras florestais, o BTG oferece opção de créditos de carbono em áreas a serem reflorestadas. No geral, terras degradadas pelo agronegócio.

Campeão de emissões

No ano passado, a Meta, de Mark Zuckerberg, adquiriu 1,3 milhão desses créditos, com opção de mais 2,6 milhões até 2038, conquanto toque à Microsoft a maior transação desse tipo já registrada: 8 milhões de créditos até 2043.

Cabe ao BTG restaurar 260 mil hectares de Cerrado. Acontece que o banco – já autuado pelo IBAMA por destruir 9.909,07 hectares de Mata Atlântica – anuncia que pouco mais da metade pode ser recuperada com espécies nativas. Ao restante? Pinus ou eucalipto. Espaço para o setor campeão de emissões de gases de efeito estufa seguir com seu consumo insustentável de água no Brasil.

A propósito, o BTG gerencia fundos de investimento do agronegócio e é proprietário de empresas agropecuárias, como a comercializadora de grãos conhecida como BTG Pactual Commodities.

A empresa mantém contratos de compra e venda de soja com fazendeiros implicados em investigações dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023. São contratos negociados em mercados de futuros, a exemplo dos créditos de carbono, que petroleiras e mineradoras aproveitam para tentar passar uma falsa imagem verde.

Oxalá a COP30 nos aponte uma saída do labirinto de ilusões em que muitas vezes no desorientamos.

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