O blefe acabou: prisão revela o verdadeiro tamanho da ultradireita

Com ex-presidente fora de cena, bolsonarismo mostra suas dimensões reais: entre 10% e 15% da população
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A profecia não se cumpriu. O Brasil não parou. As instituições não ruíram. No dia seguinte à prisão de Jair Bolsonaro, o que se viu não foi a convulsão social prometida por seus apoiadores de redes sociais, mas um silêncio constrangedor. Um país que seguiu sua rotina, com trânsito nas capitais, comércio aberto e o noticiário ocupado em analisar a vitória da democracia e das instituições. Esse vácuo, essa ausência de comoção talvez revelem a análise de conjuntura mais honesta sobre o que a extrema direita se tornou no país.

Durante anos, o bolsonarismo foi mestre na arte de parecer maior do que realmente é. Turbinado por uma milícia digital financiada pelos donos do dinheiro, e pela capacidade midiática de seu líder de gerar manchetes diárias, o movimento criou uma distorção da realidade, uma espécie de espelho de parque de diversões. que o inflava a proporções épicas.

A estratégia era simples e eficaz: ocupar todo o debate público com polêmicas, ataques a minorias e uma incessante guerra cultural. Com isso, vendeu-se a ideia de uma nação rachada ao meio, um cabo de guerra entre dois polos de força equivalentes.

Líder afônico e encarcerado

A prisão, ou melhor, a não reação a ela, veio para estilhaçar esse espelho. Revelou que o barulho digital não se traduzia em corpos nas ruas; a indignação dos algoritmos se dissipou na luz do dia.

Basta puxar pela memória e comparar com a prisão de Lula em 2018. Naquela ocasião, goste-se ou não do ex-presidente, o país sentiu o abalo. Houve uma comoção genuína, que extrapolou o campo petista. Houve enorme ato de protesto no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC no dia da prisão. Em seguida, uma vigília com centenas de pessoas, que durou os 580 dias da prisão. Mobilizações orgânicas e persistentes, nutridas por sindicatos, movimentos sociais e uma base partidária com capilaridade real em todo o Brasil.

Hoje, a convocação de Flávio Bolsonaro para uma vigília virou piada nas redes sociais, um retrato melancólico, que desmente a narrativa de um líder com apoio popular inabalável. O contraste é gritante e pedagógico: o lulismo demonstrou ter raízes sociais profundas; o bolsonarismo revelou-se um fenômeno personalista, de superfície, altamente dependente da presença constante e do poder institucional de seu líder.

Assistimos ao encontro do bolsonarismo com suas dimensões reais, evidenciadas nas pesquisas que apontam um núcleo duro de 10% a 15% da população, antes vistas com desdém pela militância de ultradireita, mas que agora soam plausíveis. Este núcleo, fiel e ideologicamente entrincheirado, é engajado, mas numericamente insuficiente para paralisar uma nação de mais de 213 milhões de habitantes.

Era um movimento que polarizava no grito, não nos números. Sua força residia na capacidade de pautar o debate, de forçar todos a reagirem às suas provocações. E agora, com o principal líder afônico e encarcerado, a barulheira diminuiu ao patamar de um sussurro. O silêncio que se seguiu à sua prisão não foi de medo, mas de indiferença da maioria e de desorientação da minoria.

Para piorar o cenário da extrema direita, o próprio Bolsonaro parece ter se empenhado em implodir sua principal narrativa. O ‘surto’ de queimar a tornozeleira eletrônica foi um tiro no pé de proporções gigantescas. Um erro de cálculo político primário.

Ele tinha nas mãos a chance de ouro de posar de mártir em prisão domiciliar, alimentando a tese de perseguição política para seu rebanho e, quem sabe, para observadores internacionais. Ao invés disso, com um ato de desespero e paranoia, entregou de bandeja o argumento de que não cumpre regras, de que seu desprezo pelas instituições é patológico, dificultando até para o mais fanático dos seguidores defender a tese de injustiça. Ele confirmou a caricatura que seus adversários sempre pintaram: a de um homem patético, que se crê acima da lei.

Bola de ferro no tornozelo

Ricardo meme
Meme nas redes sociais (Foto: Reprodução)

Com o patriarca fora de cena, o projeto de transformar o bolsonarismo numa dinastia está afundando. Enquanto Eduardo se aproxima da inelegibilidade por flertar abertamente com a ruptura democrática e Flávio se coloca na mira do STF, o movimento fica perdido e sem um herdeiro natural que combine o sobrenome com um mínimo de carisma ou projeto político viável.

No fim, o sobrenome que já foi o grande trunfo da família virou uma bola de ferro atada ao tornozelo, que impede qualquer nova liderança de decolar.

Esse cenário pode redesenhar o mapa político da América Latina, interrompendo o avanço do ciclo da extrema direita na região. Historicamente, o Brasil costuma importar tendências políticas. A ascensão de Trump precedeu a de Bolsonaro. Sua queda, também. Mas agora, enquanto o mundo assistiu ao retorno de Trump à cena principal nos EUA e ao avanço da direita radical em países como a Argentina de Milei, o Brasil parece inclinado a seguir quebrando o ciclo.

O motivo talvez seja simples: o país já viu esse filme e não gostou do final. A experiência de quatro anos de governo Bolsonaro serviu como uma vacina amarga. O custo institucional, o isolamento internacional e a trágica gestão da pandemia deixaram cicatrizes profundas e criaram anticorpos na sociedade e nas instituições.

A encruzilhada do bolsonarismo é cruel: sem seu líder e sem força para ditar as regras, a única saída para não se tornar totalmente irrelevante é capitular ao centrão. Terá que se contentar em ser coadjuvante no governo de quem vier, engolindo em seco e aceitando as migalhas de poder que lhe forem oferecidas. É um retorno humilhante à sua condição pré-2018: um ator secundário, barulhento, mas contido pelas amarras do pragmatismo político.

O movimento que sonhou em refundar o Brasil sob uma ótica autoritária e messiânica terminará seus dias negociando cargos de terceiro escalão em troca de tempo de TV. O blefe, enfim, foi pago. E a conta, para o bolsonarismo, é a irrelevância.

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