Novos jornais velhos

De Yrigoyen a Milei, certos líderes políticos preferem as bajulações às más notícias
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Jorge Luis Borges dizia que não importava se a história que lhe contavam era real ou não, desde que fosse crível. E agradável. O mesmo Borges que é tão pouco lido e tão frequentemente citado sobre qualquer coisa, até mesmo com frases que nunca proferiu. É isso que o tempo faz: dilui homens, mulheres, histórias e, muitas vezes, assim como coisas que nunca aconteceram viram contos de bar, coisas que, sim, aconteceram acabam sendo rotuladas com um novo nome: mitos urbanos. O tempo faz isso. Tempo e memória.

A época ao redor do ano de 1930 foi complicada no mundo. Hoje, tantos anos depois, quase ninguém se lembra dela. Ninguém sabe o que se passava na cabeça do pobre Herbert Hoover, que teve o infortúnio inesperado de se tornar presidente dos Estados Unidos durante a Grande Depressão. Dizia-se que ele sofria de insônia, mas outros diziam que ele passava o tempo bebendo uísque e olhando pela janela, enquanto havia gente que, de outras janelas, saltava em direção ao vazio. Ortiz Rubio tentou (sem sucesso) reconciliar um México que, embora aparentemente tivesse deposto as armas, ainda cheirava a pólvora. No Brasil, João Dantas assassinava João Pessoa e, por aí, reaparecia Getúlio Vargas.

Em todos esses casos, a imprensa desempenhou um papel (para o bem ou para o mal) definidor do pensamento. Antes, durante e depois.

Semana trágica

Na Argentina, governava Hipólito Yrigoyen, um homem – no primeiro momento – progressista, com forte apoio popular, até tomar duas decisões: a primeira foi reprimir os operários da metalúrgica Vasena, no sul de Buenos Aires, o que resultou em mais de 700 mortos e milhares de feridos em meio a uma batalha desigual, que durou sete dias e entrou para a história como a “Semana Trágica“. A segunda decisão foi supor que era uma boa ideia mandar fuzilar um grupo anarquista que reivindicava melhores condições de trabalho para a população rural da Patagônia. Esse episódio terminou com mais de 1.000 mortos e ficou conhecido como a “Patagônia Rebelde“.

Patagonia rebelde 2 (1)

Marcha de trabalhadores do campo em Puerto de Santa Cruz, na Patagônia, em 1921

E o que a imprensa tem a ver com tudo isso? É fácil. Pensemos em uma época em que não havia outro meio de comunicação além do jornal. O que o jornal dizia era a verdade, sem discussão. Ali estavam os fatos, e não havia verdades relativas. Daí nasceu a frase – e a crença – de que “se está no jornal, é a verdade”. O jornal era aquele objeto próprio que chegava à porta de sua casa. Aquele era o “seu jornal”.

Hipólito Yrigoyen era um homem de grande popularidade, atacado pela imprensa por tomar medidas populares, e isso fazia parte da normalidade. A questão é que, com essas duas decisões anteriores, sua popularidade diminuiu entre as classes média e baixa, e greves e confrontos de rua começaram a eclodir. Mas Yrigoyen não sabia disso, graças a um recurso tão primário como a época em que ele vivia e tão simples como inacreditável: seus assessores imprimiam um jornal somente para o presidente, onde ele se “inteirava” que os argentinos estavam cada vez mais felizes. Então, o presidente fazia discursos e respondia com base nas informações que tinha e, claro, ninguém entendia por que ele estava dizendo aquelas coisas. No final das contas, ele habitava esse diário. Aquilo terminou com um Yrigoyen derrotado, sem poder concluir seu mandato e sem compreender por que as pessoas nas ruas felicitavam os golpistas.

Todos sabemos que certos líderes políticos, uma vez alcançando uma posição de poder, preferem as bajulações às más notícias. De fato, nisso reside o embrião de muitas derrotas. Mas esse é assunto para outra hora, porque, no roteiro destas linhas, chegamos agora ao presidente Javier Milei.

Lista de infortúnios

Milei chega à presidência sem outro plano além de ser presidente. Ele se apresenta como economista em programas de televisão, citando autores de teorias econômicas. Talvez, como observação de pé de página, valha a pena mencionar que Milei escreveu três livros sobre economia, cujo resultado foram três processos de plágio movidos pelos verdadeiros autores.

Mas estamos ocupados com a atualidade, na qual o presidente insiste em dados assombrosos. Segundo ele, a inflação caiu, com o que o novo milagre argentino é ser o único país onde a inflação diminui ao mesmo tempo em que os preços sobem. No caso dos serviços básicos e da alimentação, a elevação chega a mais de 1.200%. No último mês, os preços da gasolina aumentaram oito vezes, enquanto os salários e os orçamentos para a saúde e a educação estão congelados há mais de um ano. As aposentadorias foram dramaticamente reduzidas e os idosos precisam decidir se comem ou compram remédios, porque o plano de excelência que lhes oferecia assistência gratuita foi revogado pelo atual governo. A lista de infortúnios, à qual se somam as 16 mil empresas que fecharam e as centenas de milhares de desempregados, é engrossada pelos números alarmantes de pobreza e indigência, que alcançam 60% dos argentinos.

Agora, já não há jornais. Há algumas empresas privadas que as pessoas insistem em chamar de “redes sociais”. É lá que Milei vive. Cercado por trolls, congratuladores pagos e aplaudidores que vivem em seus celulares, sem atrever-se a olhar pela janela. O celular é aquele lugar próprio e pessoal, onde a realidade, muitas vezes, não entra. Não importa se o que dizem é verdade: é crível, e pronto. Só valem os resultados do famosíssimo algoritmo, o qual diz ao presidente que as pessoas estão felizes e, então, Javier Milei discursa desde essa Nárnia particular, que lhe proporcionou o gesto de incredulidade quando perdeu, escandalosamente, oito das dez eleições nas províncias, incluindo a província de Buenos Aires, onde vive quase metade dos argentinos.

De Yrigoyen até agora, quase cem anos se passaram, e alimentamos a crença de que evoluímos. E pode ser que seja certo. Exceto os jornais, que, ainda que agora sejam milhares e mais velozes, continuam sendo os mesmos e, portanto, têm o mesmo efeito. Depende para quem.

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