Escolha o Príncipe da Paz

A imagem do Deus cruel, que autoriza a matar em seu nome, não cabe em cultos evangélicos
ouça este conteúdo
00:00 / 00:00
1x

Escrevo no dia seguinte ao da Operação Contenção, no Rio de Janeiro. Um dia após a ação mais letal, desumana e criminosa do Estado, que o governador Cláudio Castro classificou como “um sucesso”, mesmo diante das 121 mortes notificadas.

O cenário dantesco reitera o extermínio das populações pobres, negras e periféricas como política de segurança pública, numa explícita efetivação da espúria, estúpida e injusta crença de que “bandido bom é bandido morto”. Primeiro, porque a morte de criminosos por indiscriminada execução policial implicaria crime contra os direitos humanos – o Estado não pode ser bandido para combater a bandidagem. Mas, também e principalmente, porque bandidos são exceção nas comunidades, o que implica o fato de que o maior custo de tamanha crueldade, justificada como enfrentamento do crime organizado, são as incontáveis vítimas inocentes, que pagam com suas vidas pela ineficiência de um Estado sabidamente corrompido e amalgamado com o crime que diz combater.

A truculência violenta do Estado em seu confronto com o crime tem se mostrado ineficiente desde sempre, exceto para aqueles que lucram com a necropolítica. Essa realidade sacrificial de vidas humanas, onde se incluem, além dos criminosos nefastos e dos cidadãos inocentes, também policiais íntegros, e as famílias enlutadas de todos, envolve um imaginário maniqueísta, que insiste em separar bem e mal, luz e trevas, como se o mundo não fosse uma grande sombra cinza.

Imaginário maniqueísta

Esse olhar sem dégradé, que separa homens de bem e perversos, os quais merecem a morte, tem suas origens e fundamentos em certo pensamento religioso, que, embora devesse ter sido soterrado nos escombros da história iluminada pela modernidade, ainda encontra espaço em setores da sociedade identificados pelos adjetivos populismo, reacionarismo e tradicionalismo, amplamente expostos, desde as redes sociais digitais, think thanks e, pasmem, púlpitos de missas e cultos evangélicos.

Além de filosófica, a noção de bem e mal é uma categoria religiosa que encontra raízes na dualidade sagrado versus profano. O debate, que tem início na Reforma Protestante do século XVI, ganha contornos irreversíveis na Revolução Francesa e no Iluminismo dos séculos XVII e XVIII e perduram como chave hermenêutica da sociedade contemporânea.

Martinho Lutero ousou desafiar o monopólio da autoridade religiosa, até então reservado à Igreja Romana. O monge agostiniano optou por ser fiel à sua consciência, em detrimento da submissão ao clero (Papa incluso). Instado a se retratar pelos posicionamentos críticos à Igreja, explicitados em suas famosas 95 teses afixadas na porta da igreja do Castelo de Wittenberg, em outubro de 1517, Lutero declarou, solenemente, na Dieta de Worms, que o condenou como herege: “A não ser que eu esteja convencido pelo testemunho das Escrituras ou pela razão clara (pois não confio nem no Papa ou em concílios por si sós, pois é bem sabido que eles frequentemente erraram e se contradisseram), sou obrigado pelas Escrituras que citei e minha consciência é prisioneira da palavra de Deus. Não posso e não irei renegar nada, pois não é nem seguro e nem correto agir contra a consciência. Que Deus me ajude. Amém”.

Espírito da dúvida

A tradição protestante fez emergir o espírito da dúvida, a legitimidade da liberdade de consciência frente à autoridade eclesiástica, e tirou das mãos da Igreja a prerrogativa de dizer o que é ou não é verdade. A Revolução Francesa, cujo espírito pode ser resumido na lendária afirmação do padre, depois ateu, Jean Meslier, “o homem só será livre quando o último rei for enforcado nas tripas do último padre”, levou o debate da modernidade ao máximo de tensão. A modernidade trouxe à luz a cisão entre religião e ciência, fé e razão, Igreja e Estado, e, em última instância, o divino e o humano. O fim das monarquias fez surgir o estado laico, com suas instituições republicanas, e todo o aparato cívico e jurídico que resultou no que hoje chamamos democracias liberais.

René j. meslier (gravure 1802)
René Meslier (gravura de 1802)

A Igreja, que ocupava o topo da pirâmide e acreditava estar legitimada por Deus, perde seu posto para um mundo sem Deus. A fé é condenada como superstição, e a religião é relegada às questões de foro íntimo e privado, deixando a arena pública nas mãos da racionalidade científica como critério último.

A ruptura faz eclodir um mundo cindido entre, de um lado, pessoas e instituições que se julgam autorizadas por Deus para defender, em todas as esferas da sociedade, o ordenamento eterno, imutável e universal para a vida coletiva; e, de outro, os humanistas secularizados, que ou não acreditam em Deus ou não acreditam que Ele tenha a última palavra no mundo dos homens. De um lado, os tradicionalistas, especialmente religiosos, também associados ao pensamento conservador e reacionário, em oposição aos modernos, cientificistas, não religiosos, agnósticos e ateus, responsabilizados por aqueles de promoverem a destruição da tradição judaico-cristã e pôr o mundo todo a perder.

Espiral sem fim

Os séculos de conflitos entre as duas lógicas sistêmicas chega ao mundo contemporâneo, e ao Brasil em particular, com o recrudescimento dos movimentos religiosos de direita e extrema direita, católicos e evangélicos, que acreditam ter a missão de devolver a Deus o comando e o controle da história. A premissa de que Deus é um poder onipotente implica que nada pode ficar de fora de seu domínio. Os eleitos de Deus devem ser também eleitos (ou reconhecidos) pelo povo, para que exerçam o poder em nome ou mesmo no lugar de Deus, com o fim de  implantar o reino de Deus na terra. Os modernos, humanistas e ateístas são os grandes adversários do mundo sob a égide de Deus.

Essas ideias dominionistas e antimodernas têm seus fundamentos em pensadores chamados tradicionalistas e alimentam grupos neofascistas, neonazistas, supremacistas e extremistas de todo o tipo. Ajudam a entender porque existe gente que acredita que chacinas e carnificinas promovidas por um governo em pleno Estado Direito podem ser consideradas “um sucesso”.

O verdadeiro conflito, entretanto, não é entre fé e razão, religião e ciência ou Igreja e Estado. O verdadeiro conflito é entre a imagem cruel de Deus, essa que autoriza a matar em seu nome, e a revelação de Deus na face de Jesus de Nazaré, esse que manda amar os inimigos, virar a outra face quando agredido, perdoar 77 vezes 7, e jamais apedrejar pessoas em flagrante delito, sob pena de receber o mesmo julgamento e morrer sob outra pedra que vem das mãos de outro que se julga justo e receberá o mesmo destino, numa espiral sem fim até que ninguém mais reste. Escolha o Príncipe da Paz.

Assine a Revista Liberta

Tenha acesso ilimitado a todas as edições, com reportagens exclusivas, análises jurídicas e políticas, além de um olhar crítico sobre a história sendo escrita diante dos nossos olhos.

Quero Assinar
Já é assinante? Entrar