A operação policial nos Complexos da Penha e do Alemão, no Rio de Janeiro, que resultou na morte de 121 pessoas, incluindo quatro policiais, não pode ser tratada como um episódio isolado. Ela é a expressão mais brutal de uma política de segurança pública que se consolidou no Brasil: a lógica da guerra contra os pobres. A questão central que emerge é se seria possível adotar uma política pública eficaz, que prescinda de respostas de alta letalidade. A tese defendida aqui é que sim.
Estado Penal Máximo
Como aponta Loïc Wacquant, o neoliberalismo tardio opera em um paradoxo: Estado Social Mínimo e Estado Penal Máximo. A retração do Estado como provedor de direitos básicos (educação, saúde, infraestrutura) é acompanhada pela hipertrofia do aparato repressivo. A miséria, produzida pela própria ordem econômica, é enfrentada não com políticas de bem-estar, mas com operações militares em territórios vulneráveis. A chacina do Alemão é, portanto, a face mais explícita dessa contradição.
Sob a lente da Criminologia Crítica, a aparente ineficiência da segurança pública não é um erro, mas uma funcionalidade: o sistema criminaliza a pobreza e invisibiliza os crimes das elites. O encarceramento massivo de jovens negros e pobres, que representam quase 70% da população carcerária brasileira, é a prova de que a seletividade penal é estrutural. A violência policial não é um desvio, mas um mecanismo de controle social, que reforça o status quo e mantém as injustiças da ordem vigente.
A contradição se revela, de forma cristalina, quando se observa que o mesmo governador que celebrou a operação letal no Alemão mobilizou a Procuradoria-Geral do Estado para defender judicialmente a Refit (Refinaria de Manguinhos), investigada pela Polícia Federal por lavagem de dinheiro e adulteração de combustíveis. Ou seja, o Estado é implacável contra o varejo da droga na favela, mas leniente com os crimes bilionários que financiam o próprio crime organizado. A guerra é contra o elo mais fraco dessa cadeia criminosa, enquanto os financiadores permanecem protegidos.
Espetáculo político
Operações como a do Alemão não são apenas sobre segurança, mas sobre narrativa.
A fabricação do caos, transmitida em tempo real, produz medo e legitima discursos populistas, que se nutrem da insegurança, tornando a população, sobretudo os mais pobres e menos assistidos, reféns dessa lógica perversa. A hiperbolização da violência desvia o foco das crises fiscal e social, blinda as mazelas da segurança pública e transforma a chacina em combustível eleitoral. O espetáculo da morte é, assim, uma técnica política.

Alternativas ao punitivismo: atacar as causas, não apenas os sintomas
Embora a lógica vigente torne a letalidade inevitável, existem alternativas racionais que poderiam romper com esse ciclo. Elas não se limitam a combater os efeitos imediatos da criminalidade, mas enfrentam suas condições causais. E de que condições favoráveis a essas atividades criminosas estamos falamos aqui? As que conjugam dois grupos de fatores: debilidade institucional e precariedade social. Portanto, qualquer política pública de segurança que almeje o controle racional da criminalidade não deveria prescindir de:
• Inteligência financeira e combate ao colarinho branco: descapitalizar as cúpulas criminosas, perseguindo redes de lavagem e fraudes empresariais que sustentam o tráfico e as milícias, um exemplo prático e didático foram as operações Carbono Oculto, desencadeadas pela Polícia Federal.
• Reforma institucional da polícia: controle interno rigoroso contra corrupção e abuso de força, para recuperar legitimidade e confiança social.
• Presença social do Estado: ocupação dos territórios com educação, saúde, infraestrutura e oportunidades de trabalho, minando a base de recrutamento do crime.
• Coordenação nacional de segurança pública: fortalecimento de um sistema único, capaz de integrar inteligência e políticas sociais, em vez de respostas fragmentadas e midiáticas.
Essas medidas, porém, esbarram na seletividade estrutural do sistema, que privilegia a repressão imediata e o espetáculo político em detrimento da transformação social.
Conclusão
A chacina do Alemão expõe o preço das contradições do Estado brasileiro, em tempos de capitalismo tardio, na sua versão neoliberal. Enquanto o Estado for implacável com os pobres e leniente com os ricos e o medo continuar a ser um atraente ativo político-eleitoral manipulável, a tendência é a de que a violência letal continue sendo não apenas a resposta preferencial, mas a única resposta possível dentro da lógica vigente.
A segurança pública fundada na força bruta e cega de um sistema que sacrifica vidas para proteger a ordem econômica e política que o sustenta não é apenas incompatível com o Estado Democrático de Direito, mas é interditora do sonho de uma sociedade mais justa e menos desigual rumo a seu projeto civilizatório.