A conveniente união entre o bolsonarismo e o Centrão, especialmente na Câmara dos Deputados, evoca a imagem do cão bicéfalo Ortros, guardião dos bois vermelhos do gigante Gerião na mitologia grega. O monstro canino de duas cabeças está presente na literatura brasileira na obra Os Doze Trabalhos de Hércules (1944), de Monteiro Lobato, que popularizou entre as crianças e a juventude a simbologia daquele monstro vigilante, que protege um poder injusto.
Tal metáfora ilustra bem a fusão entre esses dois campos políticos que, embora diferentes, atuam juntos como guardiões ferozes de um mesmo tipo de poder concentrado, que lhes garante privilégios.
Proteção de poder
No mito, Ortros representa a vigilância absoluta, a ferocidade que impede qualquer transformação. Sua função é latir e amedrontar todo aquele que se aproxima do rebanho de Gerião, cujo poder ilegítimo o transformou num anti-“bom Rei” por dominar sua ilha de modo contrário ao ideal da pólis grega, pela força e não pelo debate democrático.
Em Lobato, a boneca Emília engana o cão com sua astúcia e tagarelice para ajudar Hércules a chegar ao rebanho. Mas, antes disso, o monstro cumpre o seu papel: bloquear as mudanças, intimidar oponentes e proteger um senhor que teme perder o que acumulou. A analogia se impõe quando observamos as similaridades com o comportamento político da aliança entre bolsonarismo e Centrão.
Como no mito, essa aliança forma um bloco de proteção do poder, cujo propósito é resguardar privilégios, bloquear reformas e manter sistemas arraigados que contrariam o interesse público e, muitas vezes, a própria legalidade constitucional.
Trata-se de uma combinação entre a agressividade ideológica do bolsonarismo e o cálculo fisiológico do Centrão, duas cabeças que defendem o mesmo Gerião contemporâneo: o Estado capturado, submetido a interesses privados, milícias, corporações políticas e redes ilícitas, que sequestram o orçamento e a máquina pública.
Outra característica do cão Ortros é sua reatividade primária: vigia, ataca e protege, mas não cria nem transforma.
De forma similar, a atuação conjunta de bolsonarismo e Centrão no Congresso tem sido marcada pela obstrução do que ameaça seu campo de influência pela contenção de investigações, pela blindagem de aliados e pela manutenção de uma estrutura de trocas fisiológicas. É uma força dedicada a impedir perdas para seu campo, mas incapaz de construir horizontes programáticos para o país. Interdita o debate, pois não há projetos a serem comparados.
Lobato descreve o cão bicéfalo como pavoroso, símbolo de terror, que afasta qualquer tentativa de questionar o poder estabelecido. A aliança entre Centrão e bolsonaristas opera com a mesma lógica: intimida por meio de uma retórica agressiva da extrema direita e, ao mesmo tempo, morde com as chantagens institucionais típicas do fisiologismo: distribuição de emendas, controle de cargos e ameaça permanente de paralisia legislativa. Late na retórica e morde no mecanismo de poder.

Desgaste político
Essa fusão, contudo, não existiu desde o início do governo Bolsonaro.
Eleito em 2018 com discurso antipolítica, Bolsonaro dizia rejeitar o “toma-lá-dá-cá” e atacava o próprio Centrão. Algo que se demonstrou uma grande falácia. Pressionado por crises e investigações, mudou de posição no ano pandêmico de 2020. Entre maio e julho daquele ano, iniciou negociações com PP, PL e Republicanos, distribuiu cargos estratégicos e consolidou a aproximação com Arthur Lira.
Em fevereiro de 2021, a eleição de Lira à presidência da Câmara contou com o apoio explícito do governo e se institucionalizou de vez a aliança, fundada na proteção contra tentativas de impeachment, no controle da agenda legislativa e no acesso ao Orçamento Secreto.
Hoje, essa união segue assombrando e impedindo avanços democráticos no Brasil, mas já aparecem fissuras importantes. A prisão e a inelegibilidade de Bolsonaro, a queda de mobilização do bolsonarismo nas ruas e o desgaste político do núcleo mais radical enfraqueceram sua capacidade de liderança.
No Centrão, cresce a desconfiança de manter laços com um movimento que perdeu força e já não oferece garantias eleitorais como em outros tempos. Somam-se a isso disputas internas pela herança do capital político da extrema direita e divergências entre pragmatismo fisiológico e radicalização ideológica, fatores que fragmentam o bloco conservador.
Assim como o cão bicéfalo de Gerião, que protege um poder monstruoso mas não conduz o rebanho, a aliança entre bolsonaristas e Centrão tornou-se um instrumento de vigilância e contenção, não de projeto. Continua operante, mas fragilizada, reativa e sem um rumo aparentemente comum. Seu único consenso é impedir que os “trabalhos de Hércules” da vida real, como as reformas democráticas, o fim da escala 6×1, a garantia de uma legislação de proteção ambiental, o combate à corrupção e os grandes projetos de infraestrutura e logística que o país precisa avancem.
Trata-se, portanto, de uma monstruosidade dupla, que assombra o Brasil. Dois monstros que guardam privilégios e mordem qualquer ameaça que ouse aproximar-se do poder e dos privilégios que defendem juntos.