A cenoura e o cacete

Trump usa sanções, ameaças e ajuda econômica para barrar expansão da China na América Latina
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Em apenas nove meses no governo e com tropas, um arsenal de tarifas, dinheiro, sanções e ameaças, Donald Trump lançou uma ofensiva para redesenhar a América Latina como “quintal” dos EUA.

Na última semana, a Casa Branca ampliou sua presença militar no Caribe, com o maior contingente em mais de 30 anos. Oficialmente, o foco é o combate ao narcotráfico. Mas passou a ser acusada por Rússia, China e até mesmo dentro da ONU de estar instrumentalizando a questão como forma de derrubar governos, como o de Nicolás Maduro ou Gustavo Petro. Ambos foram acusados por Trump de liderar cartéis e as autoridades dos EUA não disfarçam a hostilidade contra Caracas e Bogotá.

No total, dez organizações criminosas latino-americanas já foram declaradas como grupos terroristas pelos EUA, abrindo caminho para ações militares, execuções sumárias e, no limite, ingerência em territórios estrangeiros.

Mas analistas e diplomatas alertam que nada disso ocorre nem por conta da suposta preocupação americana com a saúde de seu povo e nem em função da luta pela democracia.

Abandonado por diversas administrações americanas, o continente passou a ser um foco da expansão chinesa. Em dez anos, o presidente Xi Jinping fez dez viagens pela região e transformou grande parte do hemisfério sul em aliado comercial. Para a Casa Branca, portanto, desmontar a ofensiva chinesa no mundo passa, em primeiro lugar, por retomar sua influência na América Latina.

Portos na mira

O governo Trump identificou 37 portos na região operados pela China e que são considerados como estratégicos na concorrência global entre as duas superpotências, incluindo Kingston Harbor, na Jamaica, e o porto de Manzanillo, no Panamá. Terras raras, lítio e tantos outros setores também fazem parte das considerações.

Não por acaso, num gesto pouco comum na diplomacia americana, o secretário de Estado, Marco Rubio, fez duas viagens para a região latino-americana nos dois primeiros meses no cargo. Filho de cubanos imigrantes nos EUA, Rubio admitiu que nem sempre os americanos tiveram o que oferecer para a região. Mas prometeu que, desta vez, seria diferente.

“Nossa abordagem é simples e eficaz”, explicou Rubio, ainda em fevereiro. “Trabalharemos com nossos parceiros regionais, fortaleceremos as cadeias de suprimentos essenciais e criaremos segurança energética”, disse. “Mas não vamos mais tolerar abusos e afrontas contra os EUA. Juntos, deteremos as organizações criminosas que ameaçam nossa segurança. E impediremos a intervenção de potências estrangeiras em nosso hemisfério”, alertou.

A questão da falta de uma estratégia americana para a América Latina foi alvo de uma conversa de enviados do Itamaraty aos EUA, antes mesmo da eleição de Trump. Os diplomatas brasileiros ouviram da equipe do republicano que a meta era impedir a expansão chinesa na região.

Durante o governo de Joe Biden, a ameaça chinesa havia sido também identificada. Mas a proposta dos democratas foi a criação de uma Parceria para a Prosperidade Econômica, uma tentativa de beneficiar as economias da região e, assim, ampliar o alinhamento. Para Trump, a proposta era “infantil”.

Ao assumir, ele decidiu que era o momento, justamente, de adotar essa estratégia, ainda que com variações importantes – junto com a “cenoura”, viria o “cacete”. Quem estiver ao lado dos EUA terá algum benefício. Mas aqueles que optarem por não se alinhar, principalmente os países menores, sofrerão consequências.

Os aliados

Em alguns casos, o realinhamento da América Latina deu resultados pontuais. Com a Argentina de Javier Milei, conversas foram iniciadas para um acordo comercial, o que abalaria o Mercosul, além de um diálogo sobre a cooperação espacial.

Mas o salto no controle do destino do governo populista em Buenos Aires ocorreu quando, em troca de um empréstimo bilionário, Washington impôs uma aliança profunda com o governo da Argentina.

Com o Paraguai, o governo em Assunção não disfarçou a satisfação quando foi citado como “exemplo” por parte da Casa Branca ao não ceder às pressões da China e manter sua relação diplomática com Taiwan.

Em sua primeira viagem para a América Central, semanas depois de tomar posse, Rubio adotou o mesmo tom com a Costa Rica diante da disposição do governo local em frear a influência da China na região. Num comunicado, o chanceler do país centro-americano, Arnoldo André, ressaltou o status da Costa Rica como um importante aliado dos EUA, afirmando: “Os EUA consideram a Costa Rica uma nação amiga e um parceiro estratégico”.

Rubio com o ministro relações exteriores arnoldo tinoco foto chancelaria costa rica
Rubio é recebido pelo ministro costarriquenho das Relações Exteriores, Arnoldo Tinoco (Foto: Chancelaria da Costa Rica)

A declaração não vem sem um cheque. A Costa Rica quer se posicionar como um centro de semicondutores e um elo confiável na cadeia de suprimentos global. Hoje, mais de 400 empresas internacionais operam no país, sendo que cerca de 70% são dos EUA.

O país também adotou uma lei que limita os fornecedores de equipamentos de telecomunicações a empresas sediadas em nações signatárias da Convenção de Budapeste sobre Crimes Cibernéticos. Essa medida impede a participação das chinesas – decisão alinhada com os esforços de Trump para restringir os principais investimentos da China na região.

Rubio ainda usou suas viagens para tentar desmontar a ajuda médica de cubanos para o Caribe, sugerindo que os EUA poderiam ocupar esse lugar.

“O regime cubano passou décadas aperfeiçoando seu esquema de trabalho forçado para obter divisas, coagindo e exportando profissionais da área médica para toda a nossa região sob o pretexto de caridade”, disse. “O Suriname compartilha de nossas preocupações e não tem nenhum programa médico cubano. Continuaremos a trabalhar com os países do Caribe para garantir que as necessidades vitais de saúde da região sejam atendidas, sem recorrer ao trabalho forçado.”

Até mesmo o Brasil foi afetado. O ministro da Saúde, Alexandre Padilha, e outros funcionários tiveram seus vistos aos EUA suspensos por conta de suas atuações ao lado dos médicos cubanos.

País prisão

Na Guatemala, Rubio conseguiu convencer o governo a ampliar sua capacidade de receber não apenas guatemaltecos deportados dos EUA, mas também migrantes de outros países. Mas nada comparado ao acordo Trump com El Salvador, que aceitou transformar suas prisões em destinos para criminosos indesejados nos EUA.

Para enviá-los, Trump invocou uma legislação dos EUA raramente usada em tempos de guerra, que contorna os procedimentos legais de deportação. Washington pagou ao governo de Nayib Bukele cerca de US$ 6 milhões para receber os prisioneiros.

O grupo de direitos humanos Anistia Internacional avaliou que a expulsão em massa “representa não apenas um flagrante desrespeito às obrigações de direitos humanos dos EUA, mas também um passo perigoso em direção a práticas autoritárias”. O grupo disse que havia “uma conexão clara e preocupante” entre os métodos de Bukele e as ações recentes dos EUA, já que “ambos se baseiam na falta de um processo justo e na criminalização de indivíduos com base em critérios discriminatórios”.

Nenhum governo americano, desde Ronald Reagan e sua ação contra os sandinistas Nicarágua, foi tão enfático sobre o destino da América Latina como Trump.

Na mesma linha estratégica, o governo dos EUA assinou um acordo de defesa com a Guiana. A meta é mandar um recado claro para o governo de Nicolas Maduro de que suas reivindicações pelos territórios repletos de petróleo do país vizinho não serão aceitas. Rubio fez um alerta de que os americanos reagirão, caso Caracas mantenha qualquer tipo de enfrentamento, principalmente numa região onde a multinacional Exxon tem os direitos de exploração.

“Durante anos, o regime tirânico da Venezuela explorou a dependência do Caribe em relação à energia venezuelana por meio do esquema Petrocaribe. Uma década depois, muitos países ainda lutam para se libertar desse esquema”, disse Rubio. “Hoje, à medida que os EUA aumentam seu papel na região, o regime cleptocrático e enfraquecido de Nicolás Maduro se torna mais errático. Perdendo influência, Maduro se volta para ameaças contra a integridade territorial da Guiana. Isso não será tolerado.”

O foco na segurança e nos ataques contra Venezuela, Cuba e Nicarágua não são apenas questões ideológicas. A principal preocupação se refere à transformação desses locais em bases para os interesses chineses na região. “A China quer se apoderar das matérias-primas e dos recursos do Caribe, oferecendo pouco em troca”, afirmou Rubio.

Após pressão, Panamá rompe contratos com China.

Efeito dominó

O assédio também funcionou em outros países. Rubio pressionou o governo do Panamá a romper seus acordos com a China, sob o risco de ofensiva até mesmo militar para retomar o canal que liga os dois oceanos.

Assim, o Panamá, que foi o primeiro país latino-americano a aderir em 2017 à Iniciativa Cinturão e Rota (BRI) da China, foi também o primeiro a deixá-la. A esperança de Trump é a de que haja um efeito dominó e que outros países da região que aderiram ao programa de infraestrutura da China sigam o mesmo caminho.

Segundo o Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, a ruptura foi real no caso do Panamá. “Em 4 de março, a BlackRock, Inc., uma das maiores empresas de gestão de ativos dos EUA, assinou um memorando de entendimento com a CK Hutchison Holdings Limited, solidificando um acordo para comprar 90% da Panama Ports Company, que opera os portos de Balboa e Cristóbal no Panamá”, explicou.

“Esses portos têm estado no epicentro das tensões entre os EUA e o Panamá, onde Washington alegou que a empresa sediada em Hong Kong poderia fornecer uma porta de entrada pela qual a República Popular da China poderia explorar os portos ao longo do Canal do Panamá em detrimento dos interesses estratégicos dos EUA”, disse.

“Por enquanto, o acordo acalma alguns desses temores, mas seu significado também vai muito além do Panamá e traz implicações importantes para o futuro da concorrência entre os EUA e a China nas Américas como um todo”, alertou.

Ao longo dos anos, a Doutrina Monroe assumiu diferentes formas. Mas sempre teve na coerção sua âncora. Trump, 200 anos depois, retoma a estratégia. O adversário não é a Europa, desta vez, mas a China. O americano, porém, desembarca num momento sem precedentes de autonomia da região e fazer valer sua ambição pode significar tensão e, infelizmente, conflitos armados.

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