Caso Master/BRB expõe ‘cleptocaquistocracia’ à brasileira

Neologismo tem origem nas fraudes de Daniel Vorcaro, Augusto Lima e seus padrinhos políticos
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Cleptocracia: é o “governo de ladrões”. A palavra é formada pela união do prefixo grego “clepto”, que significa “ladrão” ou “roubar”, com o sufixo “cracia”, também de origens que remontam à Grécia Antiga e quer dizer “poder, força ou governo”. Um exemplo bem à mão, no Brasil, é o período em que Michel Temer ocupou a Presidência da República na esteira da deposição de Dilma Rousseff. Diz-se “cleptocracia” para designar aquela equipe montada por ele para preencher o ministério e o Palácio do Planalto.

Caquistocracia: é o “governo dos piores”. Expressão igualmente formada por prefixo e sufixo gregos – “caquisto”, termo que tem origem em “kákistos” ou “mau, horrível, feio”; e “cracia”, de governo ou poder – encaixa com perfeição na definição da Era Trágica brasileira: os quatro anos compreendidos entre 1º de janeiro de 2019 e 31 de dezembro de 2022, quando Jair Bolsonaro (ora condenado por tentativa de golpes de Estado, formação de quadrilha, atentado ao Estado Democrático e depredação de patrimônio público) esteve sentado na cadeira de presidente.

Cleptocaquistocracia: seria o sistema instalado no Brasil, definindo o “governo dos piores e dos ladrões” ou simplesmente o “governo dos piores ladrões”, caso o resultado da eleição de 2022 não tivesse sepultado o projeto de perpetuação no poder da choldra de canalhas, corruptos, cafajestes e autoritários, que ascenderam ilegitimamente com Temer depois do impeachment sem crime de responsabilidade de 2016.

A eles se somou a horda de sequestradores da República com a qual Bolsonaro aparelhou as instituições depois de vencer o pleito de 2018, conspurcado pela inabilitação eleitoral de Luiz Inácio Lula da Silva (favorito para vencer até ser impedido de competir), decorrente da sentença irregular prolatada pelo então juiz Sérgio Moro.

A história de Lima e Vorcaro

Daniel Vorcaro e Augusto Lima, a dupla de ex-banqueiros que agora está na cadeia e viu seus negócios financeiros virarem micos instantâneos, são o elo entre as correntes de comando da política, do mercado financeiro, do lobby e da usura descarada do andar de cima da sociedade brasileira.

Essas correntes de comando delimitam os campos da batalha seminal entre os estratos sociais do país e demarcam o vasto espaço que a minoria detentora do capital e das ferramentas de poder possui para estabelecer e deslindar suas estratégias opressoras contra a maioria de um povo espoliado, cansado, explorado. Vorcaro e Lima converteram-se no hub metafórico que nos permite explicar por que ainda existe quem tenha ousadia de fazer o que eles fizeram a partir de suas conexões em Brasília e na Avenida Faria Lima, coração financeiro do Brasil, acreditando que podiam enganar a todos por todo o tempo.

Luís augusto lima e daniel vorcaro divulgação
Lima (à esq.) e Vorcaro: conexões em Brasília e na Faria Lima (Foto/Divulgação)

Augusto Lima era um vendedor de velas, abadás e vagas em camarotes do Carnaval baiano até 2018, quando surpreendeu a todos e venceu o leilão de privatização da Empresa Baiana de Alimentação (Ebal), uma estatal estadual dedicada a administrar supermercados populares.

Corria o governo de Rui Costa (PT), atual ministro da Casa Civil. Um mês depois de vencer o leilão, Lima adquiriu o direito de integrar a rede da Ebal, que reunia os estabelecimentos atendidos pelo programa estatal “Cesta do Povo”. A partir dali, ele criou o “CredCesta”, uma espécie de vale-refeição popular, que engenhosamente ganhou contornos de “cartão de crédito consignado” e passou a fazer parte do rol de programas sociais do governo da Bahia e da prefeitura de Salvador.

Em 2019, quando a extrema direita se instalou na Esplanada dos Ministérios pelas mãos de Jair Bolsonaro e muitos dos ministros e servidores de elite do 2º escalão do período de Michel Temer só trocaram a cor de seus ternos e gravatas – mudaram o aguado cor-de-burro-quando-foge do performático ex-vice-decorativo de Dilma Rousseff pelo delirante verde-e-amarelo de matizes fascistóides do pérfido capitão histriônico –, o senador Ciro Nogueira (PP-PI) apresentou o mineiro Daniel Vorcaro a Lima.

A trinca costumava se reunir nas festas privadas de Brasília, muitas delas comandadas por Nogueira. O senador piauiense é um anfitrião conhecido pelas feéricas pistas de danças e pelos rótulos generosos que serve em suas festas. Foi a farra das músicas e o preço dos vinhos europeus e do uísque japonês e escocês servidos naquelas festas que também aproximou os dois futuros sócios de Antônio Rueda, o ex-corretor de seguros do Recife que administrava o PSL (partido pelo qual Bolsonaro havia sido eleito, alugado ao clã do então presidente por Rueda), e do deputado João Roma.

Augusto Lima conhecia muito bem João Roma. Eleito pelo finado Democratas da Bahia, e naquele momento fiel escudeiro do prefeito de Salvador à época, ACM Neto, Roma é pernambucano como Rueda e brocava espaços no coração de Jair Bolsonaro. O dono do “CredCesta” se entendeu instantaneamente com Vorcaro, um ex-pastor da Igreja Batista da Lagoinha em Belo Horizonte, que migrou de atração de programa Gospel (Supersônica) para o ramo mal sucedido de corretagem de imóveis (tentou erguer um hotel da rede Golden Tulip na capital mineira para a Copa de 2014; não conseguiu e, hoje em dia, o prédio inacabado espeta e enfeia o skyline belo-horizontino).

No mesmo 2018 em que Lima venceu a privatização da Ebal, Daniel Vorcaro adquiriu o combalido Banco Máxima, recauchutou-o e deu a ele o nome de “Master”. Ao longo da escalada de convescotes em Brasília, teve a ideia de adquirir o “CredCesta” de Augusto Lima, transformando o ex-vendedor de abadás e velas em sócio. Naquele momento, usando a condição de “cartão de crédito consignado”, o vale-refeição turbinado já atendia a 6 milhões de baianos. Era um contingente que fazia o Master decuplicar seus clientes.

A explosão de negócios do ‘Credcesta’

As relações políticas fluidas com o bolsonarismo conduziram a sociedade Vorcaro-Lima para dentro do Banco Central, presidido naqueles tempos por Roberto Campos Neto.

Sob o comando de Campos Neto, o banqueiro mineiro tonificou sua carta-patente para fazer crescer o Master e teve validada a ousadia operacional. O baiano Augusto Lima, por sua vez, recebeu ele próprio uma carta-patente para operar um banco só seu. A obtenção de cartas-patentes para se montar um banco costumava ser um dos processos regulatórios mais complexos da burocracia de Estado brasileira. Não foi assim com Lima, que, rapidamente, a conquistou.

Em 2021, João Roma, que se manteve perto da dupla e sempre próximo de Ciro Nogueira e de Rueda, virou ministro da Cidadania nomeado por Bolsonaro. Para muito além de qualquer programa social, a caneta de Roma colocou o “CredCesta” no rol de programas sociais do governo federal e abriu as portas daquele tipo de crédito consignado convertido em vale-refeição para a administração pública federal. Em poucos meses o “CredCesta” passou a contabilizar 16 milhões de clientes e migrou para a administração da bandeira Visa de cartões de crédito. Porém, seguiu como um ativo financeiro do grupo Master.

Já um quinteto operacional muito bem azeitado, o grupo de amigos formado por Ciro Nogueira, Antônio Rueda, João Roma, Daniel Vorcaro e Augusto Lima mergulhou fundo no flamejante ano eleitoral de 2022. Lutando por suas sobrevivências política e financeira, desenhou as mais inacreditáveis estripulias operacionais para programas sociais do governo federal, que beneficiariam, eleitoralmente, Jair Bolsonaro e, financeiramente, redundavam em operações lucrativas para o sistema Master. Muitas dessas estripulias eram feitas por meio de ações de crédito consignado – e os banqueiros do Master tinham as credenciais para operá-las a partir das amizades influentes de Brasília.

BRB virou alternativa de sobrevivência

A derrota de Bolsonaro na tentativa de reeleição salvou o país da perpetuação daquela cleptocaquistocracia, que se consolidava com a união da choldra de Temer com a horda de ineptos da equipe de Bolsonaro. Ao mesmo tempo, obrigou o “quinteto operacional estelar” a buscar novos veios no subsolo financeiro do cerrado brasiliense para que seguisse minerando filões de dinheiro público e construindo túneis subterrâneos que ligassem o Planalto Central à envidraçada Faria Lima, em São Paulo.

Ciro Nogueira tinha a solução: o Banco Regional de Brasília, instituição financeira estatal do Distrito Federal administrada pelo Palácio do Buriti, onde ele havia plantado a colega de bancada Celina Leão (PP) como vice-governadora na reeleição do governador Ibaneis Rocha.

Luis foto paulo henrique costa presidente do brb desde 2019 foto rafael lavenère divulgação
Presidente do BRB desde 2019, Paulo Henrique Costa foi afastado do cargo pela Justiça (Foto/Divulgação)

O BRB é um escasso sobrevivente dos tempos em que toda unidade da federação tinha um banco para chamar de seu. O Plano Real pôs fim a isso, tendo federalizado a maioria deles. O Banco Regional de Brasília sobreviveu a duras penas, manteve-se de pé durante ataques especulativos à sua integridade nas administrações de Joaquim Roriz (PMDB), José Roberto Arruda (DEM) e Agnelo Queiroz (PT). Desde 2019, no início do primeiro mandato de Ibaneis, vinha sendo usado para as mais diversas peripécias e aventuras demandadas pelo governo do Distrito Federal.

Determinado a atender aos apelos da dupla Ciro Nogueira e Antônio Rueda, que o procurou clamando por ajuda ao Master, Ibaneis Rocha impôs sua vontade na instituição financeira estatal, obrigando que o presidente do BRB, Paulo Henrique Costa, afinasse a sintonia com os políticos do PP e do União Brasil, e o BRB se apresentou ao mercado como “comprador” do Master.

A partir dali, iniciou-se o enredo trágico do ruinoso fim da cleptocaquistocracia brasileira, da forma como ele foi narrado em prosa e verso desde a última terça-feira, 19 de novembro. A inovação da Ciência Política, mais uma jabuticaba bem brasileira na cena acadêmica da operação de poder, não vingou. Era estéril, graças a Deus, o enxerto do ex-vendedor de abadás da Bahia com o ex-pastor mineiro que viraram banqueiros sob as bênçãos dos operadores financeiros dos períodos de Michel Temer e de Jair Bolsonaro na presidência da República, que usaram os despachantes de luxo do lobby político, que são Ciro Nogueira, Antônio Rueda e João Roma.

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