Recentemente, uma entrevista com Manuela Dávila e uma famosa influenciadora de direita chamada Cintia Chagas para o canal Globo News causou debates no campo da esquerda feminista e até da esquerda não-feminista. Embora tenha tentado pesquisar, não encontrei material que me permitisse dizer algo sobre a recepção da direita a essa entrevista.
Ela é riquíssima em termos de experiência política, social e midiática. Precisamos conversar sobre o aspecto político e social, mas quero passar rapidamente pelo aspecto midiático.
Há pouco tempo, não havia discussão sobre feminismo nos meios de comunicação, o que leva a pensar que avançamos em termos de desmistificação desse assunto. É possível que eu mesma tenha sido a primeira pessoa a se dizer feminista no mundo da TV (quando fazia o programa Saia Justa, do canal GNT, entre 2005 e 2010). De fato, naquela época, uma feminista falava sozinha na TV e era recebida com estranheza em meio a todo um blábláblá essencialista e machista. Depois do movimento #MeToo de 2016, esse cenário vem mudando, de modo firme e constante. Uma entrevista como essa seria inimaginável há 10 anos. O feminismo é o novo espectro rondando o Brasil e o mundo. Será?
Penhasco de vidro
O medo do feminismo – que é bem parecido com o medo do comunismo – talvez esteja passando. O feminismo como política, mesmo quando visto meramente como “mais mulheres na política”, começa a parecer uma alternativa, embora haja altíssima chance de que o fenômeno do “Glass Cliff” (o penhasco de vidro) seja um perigo nesse momento. Só o tempo nos permitirá avaliar se as mulheres – e os negros, bem como outros grupos excluídos do poder – são, realmente, mais aceitas na política em momentos de crise, quando elas podem resolver problemas que os homens brancos criaram.
Na entrevista concedida à jornalista Julia Duailibi, Manuela Dávila praticou aquilo que podemos chamar de “Feminismo Dialógico”. O que Manuela trouxe ao contexto, a freiriana “generosidade pedagógica”, fez parte disso. A capacidade de acolher mulheres, mesmo as não feministas, no debate sobre violência é uma prática da ético-politica feminista.
O amparo material e prático não prescinde do amparo simbólico e sensível. Manuela explicou a Cintia que, em vez de apontar a contradição de uma mulher machista – ou de um homem machista –, seria mais razoável buscar levantar argumentos contra preconceitos de gênero no contexto de uma comunicação não violenta. Manuela ia concordando com Cintia para acolhê-la, praticando a generosidade pedagógica.
Em nenhum momento, Manuela usou táticas retóricas ad hominem, ou seja, a de atacar a adversária e não seus argumentos, até porque não a tratou como uma. Manuela respeitou seu sofrimento de mulher agredida e elogiou sua coragem de reconhecer o que se passava com ela. Assim, Manuela Dávila respondeu à dificílima pergunta: como conversar com uma anti-feminista?
Rebanho patriarcal
Certamente, essa metodologia vale para conversas com mulheres que estão abertas ao debate, como é o caso de Cintia Chagas, que vinha se mostrando perplexa ao receber apoio de mulheres feministas, enquanto as “conservadoras” – em termos simples, as não feministas –, não a apoiaram.

As antifeministas que têm lugar de fala e se expressam livremente caem no “paradoxo da machista”: elas só podem falar porque a luta feminista que elas odeiam permitiu que elas falassem. E falando, as antifeministas auto-implodem, escancarando a sua posição aberrante no que alguns vêm chamando de gado. Ora, o rebanho patriarcal precisa de ovelhas dóceis. E há muito lobo em pele de cordeiro nesse campo. O marido de Cintia, o deputado estadual de São Paulo, Lucas Bove, do PL, era um tipo desses (pelo menos para ela), mas muitos “esquerdomachos” também o são.
A postura de Cintia pode ser definida como saída da autocontradição performativa. Ela começa a escapar do “paradoxo da machista” ao reconhecer o lugar da luta que permitiu que ela tivesse um lugar, do mesmo modo que um pobre de direita sai do paradoxo – de apoiar seu algoz – ao reconhecer que seu lugar natural seria o da luta em favor da sua classe e não dos exploradores que lhe causam submissão e sofrimento.
Cintia Chagas é mais um exemplo de mulher que se alia ao seu algoz com o objetivo de encontrar um lugar ao sol, de se sentir incluída no jogo de poder, de ter uma ideia de autoestima garantida e a promessa de felicidade sustentada na fantasia de uma família patriarcal em que a mulher é submissa e, paradoxalmente, feliz.
Contudo, corajosamente, ela denuncia o marido agressor ao perceber que não era tão feliz, que sofria e, mais, corria risco de vida (o marido de Cintia jogou uma faca contra ela, além de outras violências). Cintia percebeu que sustentava uma posição altiva e aparentemente feliz na esfera pública enquanto era odiada dentro de sua própria casa.
Evolução cultural
Ela reconhece que atacava as feministas sempre que era agredida em casa, como se esse ataque fosse uma tentativa de silenciar o que ela vivia e, assim fingir, que nada estava acontecendo. Ela silenciou a si mesma apoiando o patriarcado, até que não aguentou mais viver de aparências, pois podia morrer por causa delas.
O devir-feminista da mulher conservadora e de direita tem muito a ensinar ao campo progressista. O feminismo é uma evolução cultural do comunismo. As mulheres antifeministas não são diferentes dos homens antifeministas, estejam eles à direita ou à esquerda. Ou seja, a esquerda está em crise, mas ela precisa ter coragem de avançar e, desse modo, sair da crise. Para isso, precisa afirmar-se antimisógina, antirracista, anticapacitista, ecologista e assim por diante. Ou seja, o esquerdomachismo antifeminista que faz o discurso sobre o “identitarismo” dos outros é uma esquerda ultrapassada, que não entendeu que o materialismo histórico é evolução teórico-prática da luta, ou seja, evolução da práxis.
Hoje, muitos perguntam se o feminismo é de esquerda. Obviamente, é. Se Cintia Chagas continuar pensando, vai se tornar cada vez mais lúcida e se tornar uma pessoa de esquerda, ou seja, vai perceber que a luta pelos direitos das mulheres é luta de classes, é luta pelos direitos humanos, é luta pela democracia. Eis o significado de interseccionalidade.
A pergunta que não pode deixar de ser feita é a seguinte: pode a esquerda não ser feminista? Mas essa eu respondo em um próximo artigo.